sábado, 26 de fevereiro de 2011

Da “nudez da verdade” ao “manto diáfano da fantasia”

Memória, esquecimento e ocultação, consciente e inconsciente: as “rodas do Tempo”: da “nudez da verdade” ao “manto diáfano da fantasia”

Pois não somos tocados por um sopro do ar que foi respirado antes? Não existem, nas vozes que escutamos, ecos das vozes que emudeceram? Se é assim, existe um encontro marcado entre as gerações precedentes e a nossa.
Walter Benjamim

Cada um de nós tem a sua própria história e transporta consigo a recordação das suas vivências, das suas experiências, do que viveu, do que perdeu, do que passou ao lado e tudo isto, que é registo do passado, acompanhado da percepção de cada momento do presente e, ainda, das expectativas e das esperanças para o futuro.

Na nossa memória nem tudo isto é nítido, nem tudo isto é consciente.

Nada disto é claro e perceptível e, por vezes, as nossas memórias são difusas, perdidas, modificadas e outras tantas vezes recriadas, modificadas ou substituídas por “souvenirs-écrans”, nos quais, ao fim de um certo tempo, acabamos por acreditar, com mais ou menos convicção, com mais ou menos inocência. Quem estiver inocente que atire a primeira pedra.

Quantas vezes, todos nós (uns mais, outros menos…e quem estiver inocente que atire a primeira pedra!), reconstruímos o tempo passado, reconstruímos o nosso “real” e, como escreveu Eça de Queirós, cobrimos o real com o manto da fantasia. Quem estiver inocente que atire a primeira pedra.

É por isso que todos nós temos o direito e o dever da “nossa verdade”, mas também, pelas mesmas razões , todo nós temos direito aos nossos “segredos”, mais ou menos pueris, mais ou menos inconfessáveis.

Nem sempre estamos conscientes nem preparados para confessar todas as experiências passadas, todos os nossos erros, todos os nossos medos, todas as nossas fraquezas. Quem estiver inocente que atire a primeira pedra.
Por um lado, poderemos, pura e simplesmente, querer esquecer ou reescrever determinados momentos, ou até fases e épocas, mais ou menos extensas, da nossa história individual e enviar essas “recordações” para a incrível base dos “bits” da nossa memória perdida_ por outro lado poderemos não querer ser percepcionados com base nesses acontecimentos desenquadrados do seu contexto (ou do pensamos ser o seu “contexto”), mas sim naquilo que somos no presente, ou do que nos tornamos no presente.
Todos nós, de um ou de um outro modo, somos novos Sísifos e acabamos por carregar montanha acima o nosso passado: não há nada a fazer quanto a isso, apenas nos interessa a lucidez do nosso olhar, seja ele “oculto” ou “revelado”.

O pouco que podemos mudar é a forma como nós próprios olhamos para nós mesmos, uma vez que a visão dos outros, por definição, está fora do nosso controlo, por mais eloquentes ou persuasivos que nos imaginemos.

Walter Benjamin, supra citado em epígrafe, percebia que nem sempre a História é capaz de narrar a verdade, até porque a realidade é essencialmente movente e sua percepção depende da visão de quem a lê: “Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘como de fato ele foi’. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja num momento de perigo.”

“A única coisa que devemos à história é a tarefa de reescrevê-la”, afirmou Oscar Wilde.

Ou então, como escreveu o Narrador de Shame, de Rushdie:
“A história é uma seleção natural. Versões mutantes do passado lutam pelo domínio; surgem novas espécies de fato, e as verdades antigas, antediluvianas, ficam contra a parede, com os olhos vendados, fumando o último cigarro. Só sobrevivem as mutações dos fortes. Os fracos, os anónimos, os derrotados deixam poucas marcas (...) A história só ama aqueles que a dominam: é uma relação de escravidão mútua.”

Como escreveu a sexóloga Marta Crawford: “Se o passado foi bom, ninguém se importa de o trazer ao presente repetidas vezes, quando é mau prefere-se escondê-lo. Mas ninguém é santo, faz tudo bem e nunca fez asneira. Somos seres humanos e por isso falhamos de vez em quando! E então? Não é por isso que nos tornamos más pessoas, indesejáveis e desinteressantes, porque se pode sempre aprender com os erros e fazer melhor para a próxima! Só não erra quem não faz nada! Todos temos os nossos pequenos segredos inconfessáveis, hábitos, pensamentos, experiências que por vezes se tem receio de partilhar com o outro, com medo de uma possível rejeição ou julgamento. Imagina-se que a verdade pode ser destrutiva para o outro e tem-se medo de ficar numa posição de fragilidade. Mas será que a partilha é impossível? Afinal um segredo só se torna pesado porque é o nosso segredo, o outro sente-o de outra forma.”


Não é por isso que devemos quebrar a nossa fidelidade a nós mesmos.
Escreveu Manuel da Fonseca, in “Seara do Vento”, 156:
Do fundo nevoento da memória, sombras de vultos indecisos surgem, ganham forma, expressões, gestos. Os avós, o pai, a mãe, a mulher. O casebre enche-se de mortos. Mortos que passam uns pelos outros, graves e silenciosos, sem se verem, mas que o defrontam, unânimes, de faces severas, como a encorajá-lo. Júlia, essa, separa-se de todos, chorando apavorada, torcendo as mãos. - Cala-te – sussurra o Palma. Cala-te, cala-te. Abana a cabeça com desespero, atira o braço para diante.
- O medo, o medo... Ah, se nós todos, um dia!... “

Continuo com Manuel da Fonseca, desta vez a no Posfácio à sua “Seara de Vento”, p. 12:
“A literatura fala “de uma espécie de real. Eu penso que ela procura descobrir a vida. Inventar de novo aquilo que no escritor é uma força de deslumbramento e de génio, de felicidade. A invenção da vida é uma das formas mais realistas da arte (...) A literatura, a arte, são sobretudo uma construção: é um momento em que lidamos com uma construção tão sabida de tudo que custa a acreditar.”

Fonseca afirmou: “só se criam personagens quando eles estão vivos, quando eles estremecem, crescem dentro de nós (...) Às vezes pergunto-me se aquele personagem era ficção ou era real”…o que conta, o que importa não é a realidade, o facto bruto, mas sim a verosimilhança dos caracteres e das situações, sem o que caímos no domínio da pura arbitrariedade.


Todavía, “má allá de Manuel da Fonseca,prefiro a lucidez de Camus e do “seu” ( do “nosso”) Sísifo:

« C'est pendant ce retour, cette pause, que Sisyphe m'intéresse. Un visage qui peine si près des pierres est déjà pierre lui-même ! Je vois cet homme redescendre d'un pas lourd mais égal vers le tourment dont il ne connaîtra pas la fin. Cette heure qui est comme une respiration et qui revient aussi sûrement que son malheur, cette heure est celle de la conscience. À chacun de ces instants, où il quitte les sommets et s'enfonce peu à peu vers les tanières des dieux, il est supérieur à son destin. Il est plus fort que son rocher.
Si ce mythe est tragique, c'est que son héros est conscient.
……………………………………………………………
Je laisse Sisyphe au bas de, la montagne ! On retrouve toujours son fardeau. Mais Sisyphe enseigne la fidélité supérieure qui nie les dieux et soulève les rochers. Lui aussi juge que tout est bien. Cet univers désormais sans maître ne lui paraît ni stérile ni futile. Chacun des grains de cette pierre, chaque éclat minéral de cette montagne pleine de nuit, à lui seul, forme un monde. La lutte elle-même vers les sommets suffit à remplir un cœur d'homme. Il faut imaginer Sisyphe heureux.”

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